Como o “direito de cada pessoa” na Finlândia evoluiu ao longo de mais de um século

Mais de 110 anos atrás, no leste da Finlândia, Ilma Lindgren lutou por seu direito de colher mirtilos em terras que não eram suas. Seu processo judicial criou um precedente legal, ajudando a garantir que todos possam aproveitar a natureza, independentemente de quem seja o dono do terreno.

Dê um passeio na floresta. Colha algumas frutas e cogumelos para comer. Encontre um lugar agradável para armar sua barraca durante a noite e dê um mergulho refrescante em um lago.

Em muitos países, essas coisas só seriam possíveis em uma área recreativa designada ou com o consentimento do proprietário. Na Finlândia, no entanto, você não precisa pedir permissão.

Graças à tradição do direito de cada pessoa (ou direito público de acesso à natureza, segundo tradução não-oficial da Wikipedia), as pessoas na Finlândia desfrutam de amplos privilégios para acessar a natureza praticamente em qualquer lugar, com poucas limitações.

Uma longa história

Uma mão segurando uma cesta cheia de cogumelos.

Em gerações anteriores as famílias complementavam suas dietas com alimentos sazonais das florestas.
Foto: Terhi Tuovinen / Lapland MaterialBank

O termo “direito de todos”, que nos últimos anos foi substituído por “direito de cada pessoa” ou “direito de todas as pessoas”, foi cunhado na década de 1930, mas o conceito é mais antigo e evoluiu ao longo do tempo.

Em tempos pré-industriais, era uma questão de obter seu sustento da terra. Coller frutas e cogumelos fornecia um meio de manter algum ganho autosuficiente.

Isojako (a Grande Partição), uma reforma agrária realizada no século XVIII, estabeleceu a propriedade da terra de áreas que antes eram comuns, sem proprietários designados. O número de pessoas sem terra própria cresceu ao longo dos anos. Era essencial que elas ainda pudessem usar a terra de outras pessoas.

Nos tempos modernos, a ênfase do termo está mais relacionada ao uso recreativo da natureza, mas mesmo hoje, uma pessoa que goste de colher pode economizar muito dinheiro colhendo frutas em vez de comprá-las no supermercado.

Uma legislação colcha de retalhos

Um homem segurando uma criança nos braços com uma pequena tenda e um lago ao fundo.

Hoje em dia, o direito de cada pessoa se concentra na recreação na natureza.
Foto: Emilia Hoisko /Visit Finland

Não há uma única lei na legislação finlandesa que cubra todos os aspectos dos direitos de cada pessoa. Em vez disso, várias leis diferentes estabelecem ou restringem os direitos das pessoas em relação à natureza.

Por exemplo, uma seção do código penal afirma que os parágrafos sobre roubo não se aplicam à coleta de galhos caídos, pinhas ou nozes, ou à coleta de frutas silvestres, cogumelos ou flores.

Um caso judicial específico do início do século XX, geralmente recebe atenção como um marco no estabelecimento de um precedente legal. Ele diz respeito a Ilma Lindgren (1883–1957), uma mãe viúva de três filhos, que sustentava sua família vendendo produtos no mercado.

Em setembro de 1914, Lindgren e outras três mulheres estavam colhendo mirtilos nas florestas de Ruokolahti, no sudeste da Finlândia. O proprietário local exigiu que as mulheres devolvessem sua colheita.

Lindgren teve a coragem de levar o assunto ao tribunal, incluindo vários recursos. Enquanto dois tribunais de instância inferior decidiram a favor do proprietário, a Suprema Corte, eventualmente, decidiu o contrário, apontando que “colher frutas da terra de outra pessoa não é um ato sujeito a punição”.

Exceções à regra

Mãos segurando amoras silvestres laranjas acima de arbustos verdes.

A colheita de frutas vermelhas é uma das aplicações mais populares do direito de cada pessoa. Cerca de metade dos finlandeses colhe frutas vermelhas todos os anos.
Foto: Virpi Mikkonen / Visit Finland

O direito de cada pessoa é bastante extenso, mas tem seus limites, é claro. Com o privilégio vem a responsabilidade, como diz o ditado.

Você não tem permissão para invadir o jardim ou quintal de ninguém ou andar em plantações ou terras cultivadas. Você não pode perturbar a vida selvagem, danificar árvores ou coletar musgo ou líquen. Fazer uma fogueira sempre requer permissão do proprietário da terra e é completamente proibido se um aviso de incêndio florestal estiver em vigor.

Parques nacionais e outras áreas protegidas geralmente adotam restrições mais específicas para proteger o ambiente frágil. Por exemplo, caminhadas podem ser restritas a trilhas marcadas ou a épocas específicas do ano.

Os direitos de pesca dependem do equipamento que você está usando. Pescar com uma vara e linha simples, incluindo pesca no gelo, geralmente não requer uma licença, enquanto métodos mais sofisticados exigem (redes, armadilhas ou vara e carretel). A caça é regulamentada de forma muito mais rigorosa.

Os vizinhos nórdicos têm tradições semelhantes

Dois homens em uma floresta, curvados, colhendo cogumelos com um balde ao lado.

A temporada de cogumelos normalmente começa no final do verão ou no início do outono. Muitos caçadores de cogumelos mantêm seus lugares favoritos em segredo.
Foto: Jussi Hellsten / Helsinki Partners

O direito de cada pessoa é um costume firmemente estabelecido na Finlândia. De acordo com Hannu Tiusanen, especialista sênior da Associação Finlandesa de Atividades ao Ar Livre Suomen Latu, a tradição é amplamente aceita, embora haja alguns proprietários de terras que prefiram receber uma compensação das pessoas que usam suas terras.

Certas coisas tornam a Finlândia favorável à manutenção da tradição. O país é relativamente pouco povoado, com menos de 19 habitantes por quilômetro quadrado, e a propriedade da terra tradicionalmente é distribuída entre um grande número de pequenos proprietários de terras. Aproximadamente um em cada dez finlandeses possui alguma terra.

As vizinhas Suécia e Noruega têm tradições bastante semelhantes. A Dinamarca é muito mais povoada densamente e os direitos de acesso são menos extensos.

Em sua essência, também é uma questão cultural, como Tiusanen aponta. Enquanto alguns países destacam os direitos do proprietário de terras, os nórdicos enfatizam os direitos da comunidade – de cada pessoa.

Por Juha Mäkinen, agosto de 2024